Por Franciele Nascimento[1] e Thiago A. P. Hoshino[2]
A Lei Federal 12.288, de 20 de julho de 2010, que institui o Estatuto da Igualdade Racial, hoje completa dez anos de sua vigência. O diploma teve origem no Projeto de Lei nº 6.264 de 2003, de autoria do ex-Deputado e atual Senador Paulo Paim – PT/RS. Considerando o início de sua tramitação, portanto, quase uma década foi necessária até que pudesse ser aprovado, o que já é digno de nota. Mais do que isso, inclusive, se considerarmos que o PL tinha como escopo condensar as diferentes proposições sobre a temática racial já em curso na Câmara dos Deputados. O longo percurso é indicativo da resistência enfrentada pelo Estatuto, responsável também pelas inúmeras modificações que o mesmo sofreu em relação ao seu conteúdo original reivindicado pelo movimento negro.
Dez anos depois, vale resgatar um pouco dessa trajetória. O texto do Estatuto da Igualdade Racial finalmente aprovado no Congresso Federal – relatado pelo então Senador Demóstenes Torres (DEM-GO) e sancionado pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sem vetos – tratou de matérias como saúde, cultura, educação, oportunidades de trabalho, acesso à terra, participação nos meios de comunicação e liberdade religiosa. Nas avaliações críticas que se seguiram à sua publicação, um dos aspectos destacados na redação final foi a perda de densidade de suas disposições, tornando-as mais genéricas e principiológicas do que propositivas. Entre as regras suprimidas do documento estão, por exemplo, as cotas para pessoas negras em diversas atividades, como a mídia televisiva, instrumento capital na promoção da igualdade racial e no combate à estigmatização. Outro tópico importante não abarcado pela versão definitiva foi a regularização de terras para comunidades de quilombo, cujo artigo foi excluído.
Não obstante as fundadas críticas ao texto final do Estatuto, sua existência mesma é um marco histórico, fruto de conquistas e lutas sociais. Não se tem notícia de outro diploma na história brasileira dedicado a tocar no que talvez seja o maior recalque nacional: o racismo estrutural. Nesse sentido, é significativo o giro conceitual operado pela lei, deixando o campo da mera repressão a condutas individuais de discriminação para passar a atacar a desigualdade racial entendida como “toda situação injustificada de diferenciação de acesso e fruição de bens, serviços e oportunidades, nas esferas pública e privada, em virtude de raça, cor, descendência ou origem nacional ou étnica”.
Ainda, o viés da interseccionalidade, com os fatores de gênero especialmente, merece atenção, assim como as respostas sugeridas em termos de políticas públicas e ações afirmativas, conceitos também incorporados pela lei, e que viriam a ser reforçados, em 2012, com o julgamento favorável da ADPF 186 – que tratava da reserva de vagas em universidades públicas – pelo Supremo Tribunal Federal. A leitura em conjunto do Estatuto e da vanguardista decisão do STF (que, na sequência, respaldaria a edição da Lei 12.711/12) nos leva a indagar sobre os sentidos e desafios da garantia de direitos étnico-raciais num país profundamente marcado pelo racismo, em suas múltiplas facetas, e pelos privilégios de cor. Sobretudo, vale refletir sobre o lugar da própria legalidade (sua produção, interpretação e aplicação) e sobre os sujeitos de sua operação. No plano legislativo, o Congresso Nacional contava, ainda em 2019, com pouco menos de 18% de parlamentares autodeclaradas(os) negras(os). Esse grau de sub-representação política é um dos fatores a explicar a perda de densidade de proposições como o Estatuto da Igualdade Racial em sua elaboração e votação. A conjuntura de desigualdade entre brancas(os) e negras(os) também se reproduz na composição das instituições do sistema de justiça, responsáveis pela aplicação e interpretação da lei. Conforme dados apresentados no Seminário Questões Raciais e o Poder Judiciário[3], promovido pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em julho de 2020, de 18.091 magistradas(os), as(os) negras(os) são apenas 3.274 atualmente. Deste total, não mais que 1,6% se declaram pretas(os).
Esse abismo não se mostra superável em um horizonte próximo. A expectativa, mantido os presentes índices, é de que somente em 2049 todos os ramos do Poder Judiciário apresentem mais de 20% de magistradas(os) negras(os), num país que conta com 56,10% da sua população negra.
Nas demais instituições da justiça o cenário se repete. Um retrato do Ministério Público brasileiro, em 2016, indicava que 70% de seus membros são homens e que 77% das(os) promotoras(es) e procuradoras(es) de justiça são brancas(os)[4]. Por sua vez, pesquisa apresentada no seminário Democracia e Defensoria Pública na América Latina[5], em 2019, identificou que as Defensorias Públicas também seguem majoritariamente brancas, a despeito dos poucos indicadores de raça/cor disponíveis sobre os seus quadros de membros e servidoras(es). Situação similar se verifica na advocacia, devendo-se notar que diversas seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil ainda não têm registros com o quesito étnico-racial que permitam um diagnóstico nacional da questão.
[1] Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR.
[2] Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Direito da UFPR. Pesquisador do LABÁ – Direito, Espaço e Política/CCONS – Centro de Estudos da Constituição.
Diante desse contexto, o papel da universidade também é crucial. O tema volta com força à agenda em face do ciclo decenal de avaliação da política de cotas. Os dados demonstram a necessidade de manutenção e expansão do sistema de reserva de vagas para pessoas negras, inclusive na pós-graduação, com vistas à formação de profissionais encarregadas(os), entre outras, da missão de dar vida e efetividade a leis como o Estatuto da Igualdade Racial. Igualmente necessária se faz a fiscalização desta ação afirmativa através de mecanismos de hetero-identificação e combate às fraudes que desvirtuam a política pública e impedem que cumpra os seus objetivos na construção de um ambiente plural.
No mesmo sentido, as políticas para a permanência de estudantes negras(os) em condições adequadas, bem como o fortalecimento dos Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, o enraizamento da Educação para as Relações Étnico-Raciais nos diversos cursos e disciplinas e a ampliação do quadro de professoras(es) e pesquisadoras(es) negras(os) são instrumentos essenciais para a promoção da igualdade racial enquanto política e prática acadêmicas. Enegrecer o direito e os direitos é fundamental para que os próximos dez anos de Estatuto possam fazer frente aos cinco séculos de legado racista na história de nosso país.
[3] Seminário Questões Raciais e o Poder Judiciário, disponível em: https://youtu.be/LZmgxcYEK5s
[4] Segundo dados de pesquisa desenvolvida pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CESC), disponível em: https://www.ucamcesec.com.br/wp-content/uploads/2016/12/CESEC_MinisterioPublico_Web.pdf
[5] Os resultados foram apresentados pela pesquisadora Ana Carinhanha e estão sintetizados em: https://www.forumjustica.com.br/informe-seminario-democracia-e-defensoria-publica-na-america-latina/