Por Megg Rayara Gomes de Oliveira
A Revolta de Stonewall² marca, oficialmente, o início das lutas por direitos da população LGBT nos Estados Unidos da América. As duas pessoas que acendem a centelha que deu origem às manifestações são Marsha P. Johnson, travesti negra e Sylvia Rivera, travesti porto-riquenha, à época com 17 anos.
Nos meses seguintes à Revolta de Stonewall, Marsha e Sylvia trabalham de maneira efetiva para a fundação e estruturação do movimento que hoje chamamos LGBT.
Sylvia foi uma das fundadoras da Frente de Liberação Gay e da Coligação de Ativistas Gays, além de ser cofundadora da Ação Revolucionária das Travestis de Rua com sua amiga Marsha P. Johnson.
A presença majoritária de homossexuais masculinos brancos nessas organizações contribuiu para que os debates gravitassem em torno de suas pautas, daí o nome Movimento Gay.
No Brasil, o Grupo Somos, fundado em 1978 em São Paulo, pioneiro na luta pelo direito dos homossexuais adota uma postura excludente e não permite a participação de gays afeminados e travestis³. A lógica era a mesma dos grupos de esquerda que faziam frente ao regime militar em curso e defendiam a tese de que “o homem gay afeminado não “combinava” com a Revolução” (Fernanda Dantas VIEIRA, 2015, n.p.).
Essa opinião era a mesma do regime militar que colocou em curso um processo de higienização e caça aos gays afeminados e às travestis “e todo e qualquer desviante sexo-gênero, e degenerados” (VIEIRA, 2015, n.p.)
Por mais bizarro que possa parecer o movimento gay em formação, os grupos de esquerda e o regime militar alinhavam suas posições em relação aos gays afeminados e as travestis, concordando que se tratava de um grupo podia e deveria ser eliminado.
No início do século XX o espaço destinado as travestis, se divide entre a prostituição e o teatro de revista. Existências marginalizadas que as restringem a vida noturna.
O suposto potencial perigoso e propensão ao crime passam a ser destacados e a Lei de Vadiagem, existente desde 1924, era utilizada de “maneira acrítica a serviço da dominação, exploração e submissão” (Virgínia GUITZEL, 2015, n.p.).
Em 1976 essa lei ganha fôlego em São Paulo e o delegado Guido Fonseca determina a prisão de todas as travestis “para averiguação de “vadiagem”. Entre 14 de dezembro de 1976 e 21 de Julho de 1977 foram 460 travestis detidas” (GUITZEL, 2015, n.p.). Também “foi estabelecido formas de “medir” o corpo delas, recolher suas imagens para “averiguação” a fim de determinar o quanto perigosas elas poderiam ser” (VIEIRA, 2015, n.p.).
É um período em que as travestis desenvolvem estratégias variadas de (r)existência: o uso do silicone industrial garantia formas mais “femininas”, o pajubá garantia uma forma de comunicação específica e o uso da gilete⁴ impedia que fossem presas. Este é um período nebuloso a respeito de como elas se organizam politicamente.
Gradualmente o movimento de travestis e transexuais no Brasil vai tomando forma até ser inaugurado oficialmente em 1992 com a fundação da Associação de Travestis e Liberados – ASTRAL, no Rio de Janeiro. A intenção era “realizar um encontro nacional que viesse agregar a população de travestis e transexuais que estavam pelo Brasil afora na sua grande maioria atuando nas organizações mistas de Gays e Lésbicas” (Keila Simpson SOUZA, n.d.).
É a partir de 1993 que a categoria transexual – que emerge da área da saúde – começa a ser popularizada. Classificada como transtorno de identidade de gênero pela Organização Mundial da Saúde (Maria Thereza Ávila Dantas COELHO; Liliana Lopes Pedral SAMPAIO, 2014, p. 14), esse conceito ganha espaço na mesma proporção que o movimento social organizado de travestis, que atua inicialmente, no combate a prevenção da aids.
Somente em 2003, no governo do Presidente Lula com a elevação da Secretaria de Direitos Humanos à categoria de ministério é que políticas públicas dirigidas a travestis e transexuais se efetivam. Em 2004 o programa “Brasil sem Homofobia” foi desenvolvido com o objetivo de promover a cidadania e os Direitos Humanos à população LGBT a partir de equiparação de direitos e do combate à violência e à discriminação. Já em 2005 o fortalecimento do Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos LGBT passou a contar, obrigatoriamente, com a participação de membros da comunidade LGBT.
Finalmente em 2008, a Portaria Nº 457, de 19/08/2008 regulamentava o processo transexualizador na rede pública de saúde em todo o território nacional, atendendo uma das principais reivindicações do movimento de travestis e transexuais.
Em 2011 a portaria Nº 1.612 do Ministério da Educação assegura às pessoas travestis e transexuais, o direito à escolha de tratamento nominal nos atos e procedimentos promovidos no âmbito do Ministério da Educação. Dois anos depois em 2013, o Sistema Único de Saúde (SUS) passou a contemplar o atendimento completo para travestis, transexuais, como terapia hormonal e cirurgias. A identidade de gênero passou também a ser respeitada, com a inclusão do nome social no cartão do SUS.
Outro passo importante foi dado na área da educação em 2014, ano em que pela primeira vez, travestis e transexuais puderam usar o nome social no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). A medida foi celebrada por ativistas em todo o país, pois de imediato atraiu mais candidatos e candidatas ao exame.
Notas:
[1] Este texto foi extraído do artigo EU (R) EXISTI, EU (R)EXISTO E VOU CONTINUAR (R)EXISTINDO: TRAVESTIS, MULHERES TRANSEXUAIS E MOVIMENTO SOCIAL! OLIVEIRA, Megg Rayara Gomes de. In. CAETANO, Marcio… [et al.] (org.). Quando ousamos existir: itinerários fotobiográficos do movimento LGBTI Brasileiro (1978-2018). Tubarão: Copiart; Rio Grande, RS: FURG, 2018.
[2] Em 1969 na cidade de Nova Iorque, na noite de 28 de junho, lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais reagem a uma ação truculenta da polícia nas dependências do Bar Stonewall Inn. Durante três dias e três noites a comunidade LGBT e aliados/as resistiram ao cerco policial.
[3] Nesse período não se falava em transexuais, por isso utilizo apenas o conceito de travesti.
[4] “Nós nos cortávamos com gilete, para que os policias não nos prendessem, vejam aqui, tenho ainda cicatrizes. Eles tinham medo que a gente se cortasse” (Weluma Brown).
Referências:
AMARAL, Marília dos Santos; SILVA, Talita Caetano; CRUZ, Karla de Oliveira; TONELI, Maria Juracy Filgueiras. Do travestismo a travestilidade: uma revisão do discurso acadêmico no Brasil entre 2001-2010. Revista Psicologia & Sociedade, v. 26, n. 2, 2015, p. 301 – 311. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/psoc/v26n2/a07v26n2.pdf>. Acesso em 2 mai. 2017.
BRASIL. Ministério da Saúde. Política Nacional de Saúde Integral de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais. Distrito Federal: Brasília, 2011. Disponível em: < http://bvsms.saude.gov.br/bvs/saudelegis/gm/2011/prt2836_01_12_2011.html>. Acesso em 14 jul. 2018.
_________________________. Processo Transexualizador no SUS. Distrito Federal: Brasília, 2017. Disponível em: < http:/ms.saude.gov.br/atencao-especializada-e-hospitalar/especialidades/processo-transexualizador-no-sus>. Acesso em 14 jul. 2018.
COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; SAMPAIO, Liliana Lopes Pedral SAMPAIO. As transexualidades na atualidade: aspectos conceituais e contexto. In: COELHO, Maria Thereza Ávila Dantas; SAMPAIO, Liliana Lopes Pedral SAMPAIO, (Org.). Transexualidades: um olhar multidisciplinar. Salvador: EDUFBA, 2014.
GUITZEL, Virgínia. A repressão sexual e identitária: da ditadura militar à democracia– Parte I. Esquerda Diário, 11 abr. 2015. Disponível em: < http://www.esquerdadiario.com.br/A-repressao-sexual-da-ditadura-militar-a-democracia-Parte-I>. Acesso em 14 jul. 2018.
SOUZA, Keila Simpson. E assim nasceu o movimento nacional de Travestis e Transexuais. ANTRA – Associação Nacional de Travestis e Transexuais, n. d. Disponível em: < https://antrabrasil.org/historia/>. Acesso em 14 jul. 2018.
TAVARES, Rodolfo. Uma história de muito orgulho: os 40 anos do movimento LGBT brasileiro. Disponível em: < https://empoderadxs.com.br/2018/07/01/uma-historia-de-muito-orgulho-os-40-anos-do-movimento-lgbt-brasileiro/>. Acesso em 12 jul. 2018.
A Comunicação da SIPAD agradece a colaboração da Prof. Dra. Megg Rayara Gomes de Oliveira (UFPR) no mês do Orgulho LGBTI+!