Por Gabriella Destefani da Costa*
Desde 1990, o dia 8 de abril é lembrado como o “Dia Internacional do Cigano”. No Brasil, essa celebração foi oficializada em 2006, por meio de um decreto que instituía o dia 24 de maio como “Dia Nacional do Cigano”. Promulgações como essas são de extrema importância para os grupos que compõem esse povo pelo mundo afora, uma vez que sinalizam o começo de um processo de aproximação com os Estados e a efetivação e conquista de seus direitos, após anos sofrendo com fortes preconceitos e estereótipos.
Por não possuírem um idioma escrito e se utilizarem predominantemente da oralidade, grande parte da história dos povos ciganos foi contada por não-ciganos, resultando na impregnação de construções do senso comum. Além disso, até mesmo para os pesquisadores que se dedicam a estudá-los, os dados históricos ainda são muito imprecisos. Mesmo assim, tentaremos remontar aqui alguns traços que compõem a história e cultura ciganas, a fim de tentar desmistificar ideias pré-concebidas sobre esses indivíduos e nos juntar à sua luta, através do conhecimento e da informação.
Primeiramente, estudos interdisciplinares recentes sugerem que os ciganos, enquanto povo uno em seu advento, emigraram do Norte da atual Índia, entre os séculos 6 e 11, e se espalharam, primeiro para o Oriente Médio e posteriormente para a Europa. Esse período inicial de migrações teria sido essencial para fragmentação cultural e linguística dos povos ciganos, os quais, a partir disso, não se percebiam mais como pertencentes a um grupo coeso. Entretanto, ainda que não fossem um povo homogêneo, foi durante sua estada na Europa que esses indivíduos receberam a denominação genérica de “ciganos” – uma abreviação da palavra “egípcios”, pois se acreditava que, por seus aspectos físicos, teriam vindo do Egito. Por esse motivo, alguns integrantes dessa etnia cultural consideram o termo “cigano” pejorativo. Vale destacar, entretanto, que tal expressão continua a ser utilizada por muitos sujeitos desses grupos como forma de autodeclaração.
Por muito tempo, os ciganos foram perseguidos, discriminados e proibidos de terem uma vida digna em diversos territórios, já que eram vistos como diabólicos e perigosos, como relatam documentos do século 13. Nos países da Europa Oriental, por exemplo, foram escravizados e submetidos a uma espécie de “caçada às bruxas”. Ainda, durante a formação das Monarquias Nacionais, eles atraíram a hostilidade do Estado, da Igreja e das associações de profissionais (guildas), por não terem moradia fixa e nem sempre praticarem o catolicismo, por desenvolverem variadas atividades comerciais e, em muitos casos, por seus tons de pele. A Coroa portuguesa, seguindo esse mesmo movimento, expulsou os grupos de ciganos que viviam em seu território, mandando-os como indigentes, principalmente, para o Brasil. Assim, até a Independência, 7 mil ciganos ocuparam o território brasileiro.
O ápice da perseguição aos grupos ciganos se estabelece com a Grande Depressão de 1929 e a ascensão do nazismo, que também serviram de estímulo para sua dispersão pelas diferentes nações. Inclusive, a fim de que possamos de fato aderir a causa desses povos é importantíssimo que, juntamente com a rememoração do Holocausto judeu, o Holocausto cigano ou “Porrajmos” (“A Devoração”) seja problematizado e trazido à tona, em virtude de ter sido a maior aniquilação de vidas ciganas da história (500 mil).
Atualmente, no Brasil, graças a primeira grande migração forçada por Portugal e outras posteriores relevantes (especialmente as ondas migratórias do final do século 19 e as que ocorreram durante o governo de Getúlio Vargas), os ciganos se definem por meio de três grupos étnicos no país: os Calon/Kalon, os Rom e os Sintis, sendo que os dois primeiros representam a maioria cigana nacional. Ainda que não se identifiquem como um povo único, eles compartilham certas características gerais que os diferenciam dos “gadjés” (não-ciganos), a título de exemplo: a ideia de não criar raízes, exemplificada pela sua essencialidade nômade – embora 95% dos ciganos já tenha moradias fixas atualmente, o que fez com que desenvolvessem ofícios diferenciados e aderissem às religiões dos locais que brevemente se fixavam; a fidelidade ao clã e à família, podendo, em alguns casos, conservar pressupostos patriarcais; e o luto compartilhado por todos indivíduos do grupo após um falecimento, somado à maneira como lidam com os pertences do falecido.
Infelizmente, apesar de possuírem tradições únicas, como vimos, os ciganos não são reconhecidos plenamente pela população e pelos governos no geral, que fomentam uma série de estereótipos sobre esses sujeitos, intensificando sua marginalização. Não é por acaso que, em nosso país, uma das formas de preconceito mais arraigada e pouco discutida é o anticiganismo. Isso não apenas se manifesta pelos atos abertamente intolerantes, mas também por ações institucionais de omissão de dados – como a não categorização devida no IBGE e a negligência em quantificar sua residência no território – o que impede que os ciganos tenham acesso aos serviços públicos com o mínimo de respeito. Assim sendo, ao não serem vistos como cidadãos dignos de direitos, grande parcela dos integrantes dos grupos ciganos no Brasil apresenta um precário padrão de vida, que os insere lamentavelmente nos índices de analfabetismo, desemprego, baixa expectativa de vida e criminalidade no país.
Dessa forma, mais do que nunca, é essencial que, em cada local que estejam residindo, seja dado a eles todo suporte jurídico necessário para uma vivência decente. Aqui no Brasil, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa (CDH) aprovou o projeto de lei do senador Paulo Paim (PT-RS), que, somado ao reconhecimento dessas comunidades como minorias étnicas, cria o Estatuto dos Povos Cigano (PLS 248/2015). Este documento afirma ser dever do Estado e da sociedade garantir a igualdade de oportunidades a todo cidadão brasileiro, independentemente de suas especificidades. A proposta dispõe sobre educação, cultura, saúde, acesso à terra, moradia, trabalho e ações afirmativas em favor dos povos ciganos; além do combate a toda forma de discriminação e intolerância contra eles. Tornam-se valorosas aprovações como essa, onde quer que sejam, uma vez que, ao longo de séculos, esses indivíduos entraram em contato com diversas leis e regulamentos que visavam apenas erradicá-los e obrigá-los a acatarem valores culturais externos.
Portanto, a partir dessa breve introdução, podemos perceber que, essa terça-feira, dia 24 de maio, Dia dos Ciganos, não só abre espaço para finalmente celebrarmos a cultura e a existência dos mais de 43 mil indivíduos ciganos no Paraná, assim como de outros tantos espalhados pelo Brasil afora, mas também para refletirmos sobre os paradigmas nocivos que sustentam nosso país e que impedem que o povo brasileiro possa crescer como um todo. A responsabilidade em desconstruí-los é de cada um de nós e, principalmente, de todos nós juntos!
*Gabriella Destefani da Costa é voluntária do NuCA/SIPAD e estudante de Ciências Sociais na UFPR.
Referências:
https://www.todamateria.com.br/ciganos/
http://jornal.usp.br/especial/revista-usp-117-a-construcao-das-identidades-ciganas-no-brasil/
https://super.abril.com.br/sociedade/a-saga-cigana/
http://etnicoracial.mec.gov.br/educacao-para-povos-ciganos
https://www.icict.fiocruz.br/content/ciganos-no-brasil-sa%C3%BAde-e-preconceitos
https://catracalivre.com.br/especiais/o-guia-cigano/
https://www.brasildefato.com.br/2019/05/24/dia-nacional-do-cigano-o-que-comemorar
https://www.trf3.jus.br/emag/30-anos/efemerides/24-de-maio-dia-nacional-do-cigano/